quarta-feira, 21 de abril de 2010

Clevane Pessoa entrevista Marco Aurélio Lisboa



Na foto, Marco Aurélio Lisboa, tendo nas mãos o troféu /homenagem aos sobreviventes/resistentes de 68 , oferecido pela Câmara Municipal de Beo Horizonte, nos quarenta anos desse ano que ficou na História com tantas nuances,significados e significantes.
Crédito da fot:Clevane Pessoa

Ver mais em http://achamarteblogspotcom.blogspot.com/2008/05/poetas-so-homenageados-pela-cmara.html


Considero Marco Auréio Lsboa, um grande autor, manifeste-se em prosa, poesia, ficção ou doumentario, memórias,pesquisa .NO momento, ele disponibliza capítulos do livro que escreve sobre o Araguaia, em seu blog El Senor Gato(http://elsenorgato.blogspot.com/):"O SenhorGato e Outros Babados Fortes", agora na ersã 2o10.
vale a pena conhecer a História -e a histórias da História devem sempre ser contada para não serem esquecidas ou, muito mais tarde,descaracterizadas ,distorcidas por especulações, imaginário acréscimos ou omissões.

O autor , que entrevisto aqui abaixo, escreve com seriedade, tem entrevistado pesoas, busca as fontes e vivências, apresenta-nos os protagonistas de forma veraz.


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Quero que alguma editora tão séria quanto ele e que possa projetá-lo,chegue até seu livro,através dessa entrevista e da leiturade seu blog, para que a narrativa possa chegar a alguma primorosa edição.Não se pode desperdiçar um trabalho desse porte.

Boa leitura!

Clevane Pessoa de Araújo Lopes
Diretora regionl do InBrasCi
Vice Presidente do IMEL
Acad. da ALB da AFEMIL



Marco Aurélio de Freitas Lisboa, nascido em 16.05.1950, casado, 3 filhos: Luísa, Bárbara e Henrique, auditor fiscal da Receita Federal, graduado em Física pela UFMG, atleticano.


Perguntas:

1- Sabemos que você, durantes os anos do Militarismo no Brasil, viveu clandestino. Fale um pouco da experiência de não poder usar o nome, voltar para casa, etc.
A clandestinidade era um meio para se atingir um fim: a derrubada do regime. De 71 a 73 fui diretor da UNE, sob a presidência de Honestino Guimarães. Depois disso tentei me integrar ao movimento operário, mas perdi o contato com o partido em 75 e permaneci assim até 79. Havia sido preso em maio de 71 e estava sendo procurado pelos órgãos da repressão. A perspectiva que tínhamos na época é que a luta contra o regime seria dura e prolongada. Alguns companheiros, de brincadeira, costumavam marcar encontros para o ano 2000, em Brasília, quando já estaríamos no poder.
Sabia que vários companheiros haviam sido presos tentando contatar a família. Foi o que aconteceu com José Carlos da Matta Machado, assassinado em seguida. Outros foram presos ao tentar recomeçar os estudos ou conseguir um emprego com o nome verdadeiro.
Eu conseguia me comunicar com a família através de cartas, que seguiam um longo caminho. Tinha plena consciência que tão cedo não poderia revê-los e nem usar meu nome verdadeiro, era uma conseqüência inevitável da minha militância.
2 - Como foi viver na clandestinidade? Que tipos de apuros passou?
Vivi a maior parte do tempo em pensões, quartos alugados e, durante uns meses, com uma família de nordestinos que trabalhavam numa indústria de móveis em São Paulo. Levei alguns sustos, porque a caída (prisão) de alguém era sempre uma ameaça em potencial à minha segurança. Em 73, tive que abandonar o Rio Grande do Sul às pressas, porque quase todos os meus contatos haviam sido presos.
Meu maior susto foi em 71. Estava num apartamento no Leblon, no Rio, e ainda não tinha uma identidade falsa. Um dia bateram à porta. Abri e um senhor de meia idade se identificou como sendo da Polícia Federal. Ele estava à procura de um tal de O’Reilly.

O apartamento tinha uma biblioteca (uma estante de tábuas e tijolos) cheia de livros marxistas e alguns romances. Dei tanta sorte que ele pegou um livro para examinar e escolheu um romance inofensivo. Em seguida pediu minha identidade e perguntou o que estava fazendo no Rio. Disse que estava morando com um amigo, enquanto estudava para o vestibular de economia.
Pelo visto, ele não acreditou muito em minha história e disse que eu teria que acompanhá-lo. A escada era em caracol, muito íngreme e de curvas muito fechadas. O apartamento ficava no terceiro ou quarto andar. Eu calculei que se saísse correndo na frente ele não teria visão para atirar.
Desci embalado, acelerando cada vez mais a cada volta. No último andar não consegui frear. A escada terminava em frente à entrada de serviço de outro apartamento. Com o impulso, arrombei a porta. Mal tive tempo de pegar os meus óculos no ar e não pude ver a cara da empregada, que estava com o forno aberto. Só a escutei gritando: “ai meu Deus, o que é isso!”.
Continuei correndo até a rua, dobrei o quarteirão e peguei um táxi. Eu tinha um ponto (encontro com data e hora pré-determinados) mais tarde e passei o resto do dia fazendo hora. O pé inchou, uma série de vasinhos se rompeu. Fiquei com anéis roxos em volta dos dedos dos pés e tive derrames até na dobra do joelho. Não quebrei nada, mas a luxação me deixou umas semanas sem poder andar direito.
3 - Dessas vivências, restou alguma crise de identidade?
Não, até penso que acabei me enriquecendo com novas visões. Convivi com operários e lumpen-proletários em pensões e bairros da periferia. Uma vez aconteceu um fato engraçado. Eu trabalhava como apontador para uma indústria de móveis em São Paulo - a fábrica de Móveis Pastore. Fui selecionado para fazer um teste. Eu iria fazer um curso para cronometrista. A prova era na Avenida Paulista, num prédio cheio de carpetes e vidros fumê. No dia marcado, não pude ir porque havia quebrado os meus óculos.
Finalmente, quando pude fazer o teste, fiquei junto com uma turma de engenheiros da Politécnica de São Paulo. Pedi um lápis para a psicóloga e ela me arrumou um com a ponta toda rombuda. Eu estava mal vestido e ela estava claramente me discriminando. Eu não pretendia me destacar, mas acho que a raiva me fez caprichar. Era um teste de raciocínio lógico abstrato, a minha praia.
Moral da história: pouco tempo depois, pedi demissão da empresa, porque iria para o Rio de Janeiro. Eles fizeram questão de me segurar, ofereceram um aumento e acabaram revelando a causa: eu havia conseguido a maior pontuação no teste. Para a psicóloga, deve ter sido uma demonstração prática de que as aparências enganam. Para mim, foi uma doce vingança.
4 - Você é físico, poeta, contista, jogador de xadrez... Como lida com as interfaces dessa personalidade multifacetária? A cada vivência você é um, desempenhando um papel ou vitalizando uma de suas personas, ou são todos ao mesmo tempo, interagindo?
Acho que há uma unidade, que talvez só eu consiga perceber. Eu me sinto em casa lidando com o tipo de problema que a Física e o xadrez oferecem. Em ambas as atividades, usa-se bastante o raciocínio lógico abstrato e a visão espacial. Ambas exigem um senso crítico muito aguçado. No desenvolvimento da Física e do xadrez, todos os avanços se fizeram destruindo os paradigmas pré-existentes.
Isso é bem conhecido na Física. No xadrez, só faz sentido para o aficionado. Só para dar uma idéia: tivemos o xadrez romântico, o clássico, o hipermoderno, etc.; cada uma dessas escolas criticando a anterior e buscando novas concepções estratégicas. Na literatura, o ponto de partida de meus primeiros contos foi contar uma história conhecida mudando o referencial. Tomei a história da Princesa e da Ervilha, um conto de fadas clássico, e recontei-o do ponto de vista da ervilha. Isso me rendeu umas 7 ou 8 histórias semelhantes. Uma idéia típica de um físico.
Há um estereótipo do cientista louco, incapaz de lidar com o cotidiano e de se relacionar com as pessoas; que não se interessa por qualquer outro tipo de atividade que não seja a ciência. Dentre os meus colegas de Física, um ou outro se enquadravam nesse padrão. Havia músicos de talento, alguns enxadristas, um esgrimista, gente com os mais variados interesses. Nós líamos muito e a maioria se interessava fortemente por filosofia. Recomendo a todos a autobiografia de Richard Feynman, “Está a brincar, Senhor Feynman” que mostra um típico físico. Ele tocava bongô, desenhava nus, decifrava a escrita maia, desfilou numa escola de samba brasileira, tocando frigideira e dava um curso não oficial de arrombamento de cofres, entre outras atividades. Tantos interesses não o impediram de ganhar o Prêmio Nobel.
A poesia, pelo menos como eu a pratico, tem muito a ver com a concisão das ciências exatas. Eu procuro criar um pequeno universo, que exprima uma emoção, uma imagem ou um momento com a elegância e o ritmo de uma fórmula matemática. Há a temática, algumas referências diretas que faço às ciências, mas acho que a ligação é mais profunda.
5 - Quando bem jovem, por que você decidiu-se pela luta contra a ditadura? Nessa época, considerava-se de esquerda, militante, guerrilheiro ou nada disso?De alguma forma, as circunstâncias o foram impelindo à clandestinidade, ou não?
Eu sempre fui contra a badalação e nunca me senti bem em panelinhas, portanto o meu posicionamento foi fruto de uma reflexão individual. Minha consciência política evoluiu de modo semelhante ao repúdio do povo brasileiro ao golpe. Por uma coincidência cronológica, eu tinha 14 anos em 64 e 18 em 68. O regime começou com um lado policialesco, um pouco ridículo, longe ainda do terrorismo de estado. Até 68, quando havia uma passeata, os estudantes apanhavam, alguns eram presos, tomavam uns tapas, uns eram fichados e a maioria era solta em seguida.
Em 68 eu estava no primeiro ano de engenharia e participava no movimento como a grande maioria. A opção pela militância veio em 69, quando tomei contato com o marxismo. A radicalização foi fruto do próprio regime, que evoluiu para uma ditadura fascista. É interessante notar que o Che nunca foi uma referência para mim, que não acreditava em saídas aventureiras ou românticas.
Há uma frase de Engels, que deixei escrita na parede da cela 3 do Dops: “A verdadeira liberdade é o conhecimento da necessidade”. Ela explica muito a minha opção.

6 - Que riscos mais correu?
Sem exagero, corri risco de vida. Honestino, o presidente da minha gestão na UNE foi preso e morto. Eu havia feito reuniões na casa da Lapa, onde houve o massacre de 76 e no sítio em Jacarepaguá, onde uma parte do Comitê Central se reunia. A estrutura do partido no Rio, ao qual eu estava ligado, foi quase toda presa e alguns militantes assassinados. Se preso novamente, enfrentaria no mínimo a tortura e uma longa condenação.
7 - Considero-o um competente filósofo e autor, antes de mais nada.O tempo afastado do cotidiano comum a um jovem, o tornou mais ponderado, pensativo ou mais aventureiro e corajosos? Ser clandestino o fez filosofar mais sobre a vida, as pessoas, os políticos? Você tinha que idade? Andava com grupos ou mais isoladamente?
Fiquei clandestino dos 21 aos 29. Na maior parte do tempo, me reunia com poucos militantes (outros diretores da UNE). Mais tarde, não cheguei a participar de uma célula, só tinha contatos individuais com um assistente. Com os elementos de massa, colegas de trabalho, vizinhos, etc., os relacionamentos não eram muito profundos, por necessidade de segurança. De fato, a situação me forçava a refletir bastante. Para não perder a perspectiva, eu era obrigado a pensar a longo prazo. Mas, mesmo na infância, sempre fui mais introspectivo.
Não sei se fiquei mais corajoso, sei que não tenho os receios que a maioria possui: medo de sair do emprego, de romper laços familiares, de quebrar a rotina. Ponderado é quase o oposto radical. Quando se pesa, se igualam os dois lados da balança. A minha prática sempre foi de forçar uma definição, de fugir do meio termo e do compromisso. A aventura pela aventura nunca me atraiu. Prefiro o termo comprometimento, que implica numa opção que pode ir até as últimas conseqüências. Ou coerência.
O tempo acabou me ensinando mais do que qualquer militância. Uma lição importante que aprendi é que posição ideológica e caráter não estão necessariamente ligados. A sede com que meus ex-camaradas se lançaram aos cargos de primeiro e segundo escalão me decepcionou um pouco. Hoje estou afastado da prática política, repensando uma série de questões, o que acaba me tornando mais sereno, menos indignado, talvez.

8 – Por que sentiu necessidade de escrever sobre o Araguaia?
Acho que foi um projeto que foi amadurecendo sem que eu sentisse. A necessidade imediata veio do romance que estou escrevendo, uma ficção política meio autobiográfica. Um dos núcleos do romance seria a guerrilha do Araguaia, para onde se deslocaram amigos meus, em especial Walkiria, que me recrutou para o PC do B, Idalísio, seu companheiro, Ciro Salazar, que reconstruiu o partido em Minas e Rodolfo, com quem convivi durante algum tempo.
Até então, eu tinha uma visão mais política do Araguaia - minha maior preocupação era de fazer uma avaliação da correção ou não da luta. Quando li uma narrativa romanceada: Xambioá, do aviador Pedro Corrêa Cabral, minha atenção se voltou para as outras dimensões do conflito. Os dramas pessoais, o ambiente extremamente hostil, as condições de vida miseráveis da população, que se viu entre dois fogos, naquela guerra no fim do mundo.
Comecei então a me debruçar sobre o material disponível sobre a guerrilha. A idéia era fazer uma pesquisa para ambientar o romance. À medida que ia lendo, fui me convencendo que não havia uma obra sobre o Araguaia que me convencesse. Senti a necessidade de eu mesmo fazê-la.
9 - O que faz para obter a veracidade necessária ao conteúdo de seu livro? Teve contatos diretos com sobreviventes e/ou suas famílias?
Comecei com a proposta de usar o mesmo rigor de um enxadrista que analisa uma posição, de um físico que examina uma hipótese. Fiz mapas da área, uma linha do tempo, passei mais de um mês checando várias fontes para determinar qual era a composição dos três destacamento. Para entender a lógica interna dos acontecimentos, tive que contrapor versões divergentes, até poder traçar um quadro geral.
Fiz uma entrevista muito valiosa com Criméia, uma sobrevivente da guerrilha e ainda pretendo fazer mais uma ou duas entrevistas com pessoas que lá estiveram. Conversei com militantes do Partido na época e com familiares e amigos dos mineiros que foram para lá Araguaia. O conhecimento interno do partido e de seus militantes na época tem sido muito útil. E, finalmente, há a colaboração de Elio Ramirez, meu colega de cela no Dops, antigo militante do partido que muito tem colaborado. A co-autoria do livro é dele.
Necessariamente, uma ida ao local seria muito importante. Entretanto muito tempo já decorreu, a população ainda está aterrorizada, existem muitos jagunços ainda em atividade. Tudo isso dificulta a pesquisa. Para se obter uma visão consistente seria necessário tempo, dinheiro e uma cobertura: ou de uma caravana, ou de uma reportagem. Infelizmente não tenho condições de realizar uma pesquisa in loco.
10 - Como eram suas relações com a família nuclear, quando fazia parte da oposição ao militarismo? Sua família tem essa tradição?
Minha família era muito pequena e matriarcal – minha mãe, minha tia e minha avó eram as pessoas mais influentes. Tive poucos contatos com o ramo paterno (meu pai morreu quando eu era um bebê). Era uma família de classe média comum. Minha avó tinha umas tinturas de rebeldia, havia lido Spencer na juventude e alguns livros mais pesados ( “La garçone” era um deles). Na prática era conservadora.
A leitura oficial da família era Seleções do Reader’s Digest. Minha tia chegava a ser reacionária. Era leitora de O Globo e governista (qualquer que fosse o governo). Votou em Collor, entre outras razões, porque D. Marisa era despreparada para ser primeira dama e porque Lula não tinha instrução. Minha mãe era tinha uma rebelde difusa. Não aceitava algumas convenções, era espírita. Tinha uma certa consciência nacionalista.
Meu padrasto era anti-americano e getulista. Era contra as passeatas, que chamava de baderna. Ninguém na família apoiava uma ação mais radical contra o regime. Eles se opuseram, de início, à minha participação política, em parte por medo das conseqüências.
Assim que fui preso, minha mãe se voltou abertamente contra o regime. Com a abertura e a anistia, todo mundo que eu conhecia na minha família e no meu círculo de amigos se tornou oposicionista. Apoiaram Tancredo, torceram pelas diretas, mais tarde votaram em Lula para presidente. Minha mãe é lulista até hoje.
11- O que lhe dá mais prazer , nas ações de suas vocações ?
Criar é sempre prazeroso. Quando se cria, se acrescenta alguma coisa à natureza, ao universo, que antes não havia e que vai perdurar sem você. Há uma frase de Bacon, muito interessante: “Pois a Natureza não se vence, senão quando se lhe obedece”.
Eu a interpreto assim: em nossa vida, estamos presos a uma história pessoal, a uma herança genética, a uma época e um país. Quando se cria, se está limitado por um conjunto de convenções. Mesmo assim, é possível imprimir sua marca pessoal.
O jogador de xadrez está restrito ao tabuleiro, às regras do jogo. Antes dele, milhares de jogadores já passaram pela mesma posição de abertura. Entretanto, quando se analisa a partida de um grande mestre, pelo seu estilo, podemos identificar quem está conduzindo as peças vencedoras. Um jogador, ao criar, toma o pulso da posição, sente quais são as necessidades naturais que a disposição de peças criou. Ele deve se submeter a essas exigências para criar. O trabalho literário, para mim, é semelhante. Não acredito tanto em intuição e em improvisação. Escrevo e reescrevo constantemente.

12 - Se um filho seu quisesse ser um militante contra algum tipo de sistema imposto, o que lhe diria?
Acho a juventude atual muito conformista. A rebeldia é uma atitude saudável, desde que embasada numa convicção profunda. Eu lhe diria, com certeza: se você analisou todas as variáveis e está certo de estar fazendo o que é justo, vá em frente. Na verdade, nossas decisões não são tão racionais assim. Acho que apenas a certeza de que estamos fazendo o que é necessário é suficiente para agirmos.
13 - Acha que valeu a pena?
Dessa vez, Fernando Pessoa vai me socorrer: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. No caso da luta contra o regime militar, a opção era muito fácil. Do outro lado havia um regime fascista, que oprimia toda liberdade. O fato de ter escolhido a forma mais radical de se opor a ele também me parece justo.
O fascismo avança quando lhe dão espaço. Ele não se detém diante de quem está indefeso, a sua lógica não é essa. Se não conseguimos derrotar o regime diretamente, pelo menos mostramos que o custo de governar a ferro e a fogo, sem o apoio da classe média e dos formadores de opinião tornava o regime inviável. De um jeito ou de outro, foi a lógica da força que prevaleceu. Eles conseguiram fazer uma retirada estratégica, preservando o essencial. Entregaram o poder à oposição confiável e conseguiram escapar à punição pelos seus crimes.
14 - Por que resolveu disponibilizar o conteúdo de seu livro sobre o Araguaia em seu blog El Senor Gato?
Eu queria sentir a reação de um público mais amplo. Meu livro, necessariamente, exige uma carga de informações que pode afastá-lo do leitor comum. Como pretendo lançá-lo por uma grande editora, preciso vencer essa barreira, tornar o material o mais palatável possível.
15) Pretende publicá-lo em papel? Já há editoras interessadas?
Só irei publicá-lo em papel se houver um esquema de distribuição garantido. Isso implica em uma editora. Tenho algumas em vista, mas só quero procurá-las com o livro pronto. Calculo que me faltam umas três ou quatro entrevistas e uma cinqüenta páginas, no máximo, para concluí-lo. Toda a parte que está sendo publicada já estava escrita há bastante tempo.
16) Recentemente, você foi esteve com o povo russo, o que tem a nos dizer? Que diferenças encontrou da antiga União Soviética, em relação às pessoas e aos espaços? Gosta do Leste Europeu?
A diferença é simples. Não há como dizer que a Rússia de hoje, algum dia, já foi socialista. No Brasil se tem duas imagens muito persistentes: a da época soviética e a da derrocada. A primeira é de um país cinzento, com um inverno permanente e longas filas para comprar um sapato melhor. Um estado onipresente e impessoal que exige o sacrifício de todos os interesses pessoais ao interesse coletivo. É um pouco a União Soviética de Moscou contra 007.
A última imagem é de velhinhas vendendo cocaína na entrada do metrô, bêbados caindo na rua, garotas se prostituindo e aposentados morrendo de fome e de frio. Tudo em meio aos tiroteios da máfia russa. Há um filme muito interessante, Taxi Blues, que aborda essa época.
O país que eu vi em 2001 e 2008 é um país de segundo mundo, que está crescendo a taxas muito altas, com uma infra-estrutura muito melhor do que a nossa. O povo parece cansado da montanha russa que foi sua história recente e quer um governo que lhe deixe em paz para ganhar dinheiro. A educação ainda é muito superior à brasileira e sua mão de obra muito mais qualificada. Acho, entretanto que nunca superarão os países capitalistas mais adiantados. Nunca voltarão a ser uma super potência.
O interesse da juventude pela política, ou mesmo pelo seu passado, é mínimo. No Museu de História Contemporânea, em Moscou, assisti uma cena emblemática. A professora ia guiando os alunos em uma excursão pelo passado recente. Desde a abolição da servidão em 1860, passando pela revolução de outubro, pela grande guerra patriótica (a segunda guerra mundial), até os dias de hoje. Pode-se dizer, sem exagero, que é impossível falar do século XX sem citar a União Soviética. Pois assim que acabou o passeio, ela perguntou: vapróci iest? (há alguma pergunta?). A resposta de um aluno foi curta e grossa: damói. (vamos para casa). Acho que é essa a visão da maioria: vamos cada um cuidar de si próprio.
Sobre o leste europeu, um povo me fascina: o povo tcheco e sua capital Praga. Pretendo visitá-los em breve.
17 - Gosta dos autores russos, quais?
Poesia é sempre muito difícil de traduzir. Gosto de Maiakovski. Já li outros poetas, até traduzi uma poesia de Tarkovski, mas não consigo realmente sentir a poesia russa. A época de ouro desta literatura produziu gigantes: Dostoievski, Gogol, Tolstoi, etc. Dostoievski é minha paixão de juventude que persistiu até hoje. Tenho a edição completa de suas obras pela José Olympio. Tchekhov é uma inspiração para qualquer um que pretenda ser contista. Gorki está no meio, entre os clássicos e o realismo socialista. Já os autores do chamado realismo são muito ruins. Cholokhov escapa da mediocridade. Dos mais modernos, acho Pasternak um péssimo romancista. Doutor Jivago é fraco. Soljenitsin vale mais pela suas denúncias do que pelo mérito literário. Os mais novos são ruins, muito ocidentalizados. Alguns, talvez para se contrapor ao materialismo anterior, mergulham no misticismo. Pelevin é um deles. Li o Elmo do Horror em russo (já existe a tradução). Não gostei.
18 - Você transita livremente por vários gêneros poéticos. Dê exemplos (por ex, haicais, trovas, versos livres).
Eu acho que a métrica não é uma limitação. Já fiz trova, soneto e haicais, sempre instigado por minha amiga Clevane. Acho que aprendi muito com a poesia metrificada, porque ela acaba te dando um ritmo natural. Cometo também meus limeriques, versos de cinco sílabas bem picantes. A maior parte de minha produção é em versos livres.
Uma constante é o humor. Detesto o gênero do poeta descabelado, tonitruante, solene e meloso.
Uma trova que gosto, sem seguir os rigores da métrica e da rima é essa:
Realização

Eu que sempre dei de bico
Nos rachas da poesia
Resolvi, quanta heresia!
Sem medo de pagar mico
De trovador, pôr chuteiras
Minhas musas, pôr à prova
Não sei se de meia trava
Não sei se de meia trova
Só sei que delas calçado
Corro ao encalço da meta
Metido a ser fino esteta
Sem medo de ser gozado
Um haicai clássico:
Um gato no escuro
Duas brasas se apagando
É noite de inverno
De soneto, uma provinha, os quatro primeiros versos de cabeça de papel:
Cabeça de papel
Na folha de caderno, bem guardado
O Sonho de Valsa, de pele fina.
Pois não é, que o papel ruborizado
Foi se apaixonar pela bailarina?
Esses versos podem ser cantados com a música do hino nacional. O ouvirumdum também usa decassílabos
Um limerique:
O último desejo
Só permita Deus que eu morra
Entre Sodoma e Gomorra
Brincando nessa gangorra
Varrendo esse Universo
Que vai da frente ao verso
Gonçalves Dias que me perdoe.

><88><
Por último, uma invenção minha, o multiverso:
Interior
As mãos apertadas
Contra o peito
Batem palmas
Com medo
Ó de casa
Ninguém responde
O caracol dos cabelos
A dona esconde
As pálpebras
Abrem a janela
E as almas se debruçam
Na rua, os pares
Se balançam
Ao sonho de valsa
No coreto
Uma banda
O bumbo se apaixona
Tum Tum Tum Tum
Bate o coração
E as mãos batem palmas
Sem medo
As mão passeiam
Aos pares, dançando
Pelos ares
Os balões
Se entrelaçam
Enamorados
E os namorados
Calados
Sorriem

><*><
O multiverso pode ser lido direto, na seqüência natural. Ou só os versos azuis e pares(*). É a versão com medo. E só os versos vermelhos e ímpares. A versão sem medo. É um três em um.

(*) O autor mandou-me os versos em azul e vermelho, mas substituí a estes pelo negrito sublinhado, pois aqui no blog, não consegui colocar cor, no entanto publicare em outros blogs, da NING, por exemplo, que aceitam.

NE/Clevane

19 - Conhecendo-o, perguntei muita coisa que eu sei a seu respeito, mas parto do principio que os demais estarão curiosos. Fale um pouco mais sobre você, hoje? Quem é Marco Aurélio Lisboa?
Eu gosto muito de uma brincadeira que usa uma árvore lógica. Você pensa num animal e o outro começa a fazer perguntas que só podem ser respondidas com sim ou não. È mamífero? Tem penas? É selvagem. Se usarmos 10 perguntas, poderemos ter 2 elevado a 10, 1024 respostas diferentes. Depois de 20 perguntas, seriam 1.048.576 possibilidades diferentes. Metade da população de BH. Com as perguntas certas (é atleticano?, por exemplo) daria para localizar um habitante determinado.
Brincadeira à parte, depois de perguntas tão pessoais, acho que já me identifiquei para o leitor. O que eu queria dizer é que nós somos as nossas escolhas. A vida nos joga de lá para cá, num movimento aparentemente caótico. No fim, acabamos tomando um rumo que corresponde mais ou menos às nossas vocações mais profundas. Eu me considero um sobrevivente. Depois de tanto tempo, acho que aprendi a conviver com as minhas frustrações e a ter paciência. Quando era adolescente queria ser campeão mundial de xadrez. Sucessivamente sonhei derrubar a ditadura, ter um casamento perfeito, ganhar o prêmio Nobel de Física e assim por diante.
Estou quase com 60 anos e, nos 90 que ainda me restam, pretendo aproveitar o que ficou de bom, depois de tantas tentativas: quero apreciar muitas partidas de xadrez, curtir os filhos, fugir da mesmice, levar meu casamento, com os altos e baixos de todo relacionamento. Espero manter sempre o bom humor e a língua afiada. Aos detratores, adianto que essa vai ser cremada junto com o resto, quando finalmente eu entrar em equilíbrio térmico com o Universo. Logo não haverá problemas em acomodá-la na urna.
Ah, ainda pretendo ganhar o prêmio Nobel de Literatura.

20 - Costuma conversar com seus filhos sobre suas experiências de juventude? O que deixaria aqui, escrito, para os jovens, hoje (mensagem pessoal)?
Na verdade não converso muito com eles sobre a minha juventude. Nunca pensei por quê.
Quando eu era adolescente, digamos em 64, o suicídio de Getúlio, que estava a 10 anos de distância, parecia tão longe quanto o baile da Ilha Fiscal. Acho que a juventude é necessariamente egoísta. É a hora de se descobrir. Experiências passadas não costumam ajudar muito.
Não pretendo dizer generalidades do tipo: o importante é você ser você mesmo. Acho que alguém já falou isso. Em minha juventude a tutela familiar era muito pesada, as cobranças muito grandes. Em certos aspectos, a vida do jovem era bem mais difícil. Em compensação havia muito menos conformismo e consumismo e muito mais preocupação com as questões sociais.
Hoje, principalmente da classe média para cima, os pais tem um espécie de consciência culpada, uma dificuldade imensa em colocar limites. A nossa sociedade dá ao jovem um espaço que ele nunca teve. Ao invés do adolescente reprimido, temos o adultescente querendo se enturmar.
Acho que o desafio é esse: aproveitar a liberdade e as oportunidades para fazer diferença, sair do rebanho, pensar além do grupinho, se comprometer com alguma coisa séria.
Como? Não sei. Não sou mais jovem.

<>**<>

Foi ótimo responder à sua entrevista, porque dei uma repensada nos vários projetos que ando tocando. Acho que saiu um pouco grande, não sei quais são as suas limitações de espaço. Estou mandando em anexo, para não perder a formatação dos poemas. Abração.


Marco:

Bom dia.

Acabo de ler, com gula, suas respostas.

Peço perdão por ter sido assim , uma "bulidora" da sua colméia.Mas elas , se saem e defendem e zumbem, também produzem mel.

Lindas palavras, num sentido lato e univeral.Fico até sem saber se você permite que eu as coloque em http://clevanentrevista.blogspot.com,
mas se permitir, eu o farei.A minha proposição a maior, seria enviar essa entrevista ,por e-mail, para muitas editoras boas e grandes, para conhecerem você.Outra,mais específica, é levar leitores a El Señor Gato.

Caso queria esperar até a conclusão o livro,basta dizer.Se achar que , ao concluir o livro, poderemos voltar a entrevistar você e repetir o envio dessa primeira parte .Mande dizer se já posso publicar ou devo esperar.E, repito, caso queira já colocar em seu blog, sinta-se à vontade.
Baseio-me na experiência pessoal:adoro responder a entrevistas escritas, porque a própria pessoa entrevistada empresta estilo e sabor.Já nas orais, há muita coisa do entrevistador, na transcrição- mesmo quando há gravações.Mas gosto de ser entrevistada: é qual arrumar gavetas em nisso próprio quarto: remexemos no self e na rememória.Isso, nos reposiciona, assim como achamos novos espaços para guardar objetos de tamanhos e funções variadas.

Confesso-me lisongeada porque v. citou meu nome, mas ambos sabemos que o amigo talentoso não precisaria de nenhum empurrãozinho para aventurar-se em um outro gênero poético. Ou outros..

Saciada a fome, agora vou degustar, depois de tomar banho e voltarei a ler comentar.
Preciso dizer que adorei?

Um abraço domingueiro para v. Wal e família.:
Clevane